Amor à Palavra de Deus
A assimilação da Palavra de Deus na Sagrada Escritura, através do exercício da lectio divina, é um outro componente importante da espiritualidade beneditina.
A Regra de S. Bento demonstra que S. Bento se abeberava abundantemente dessa fonte pelas freqüentes citações bíblicas que nela aparecem: o saltério é citado 55 vezes, quase sempre textualmente e os outros Livros, num total de 118 citações. Não se restringe a isso o amor de Bento à Palavra de Deus: ele distribui a salmodia hebdomadária de modo a que os 150 salmos sejam recitados integralmente na Liturgia das Horas; o código penal impõe aos irmãos faltosos a pena de não lerem a Palavra de Deus no “Opus Dei” nem entoarem os salmos; ensina que o monge, ao ler ou cantar a Palavra de Deus, o faça com humildade, gravidade e temor e edifique os ouvintes; determina o tempo para a lectio divina e, no epílogo da Regra, ensina ao monge que “nas páginas do Antigo e do Novo Testamento se encontra uma norma retíssima da vida humana, para quem se apressa para a pátria celeste”.
Um outro cuidado de S. Bento é desejar que o monge assimile a Palavra de Deus e, para isso, prescreve, em algumas Horas litúrgicas, a sua recitação “de cor” pelo leitor (RB 9,10; 12,4), o que implica o esforço de guardá-la no coração (de cor), como Nossa Senhora. Decorando a Palavra de Deus, o monge pode ruminá-la, isto é, repassá-la no espírito, no decorrer do dia (RB 7,18.65) . Esse amor de Bento pela Palavra de Deus encontra-se com o desejo da Igreja, expresso na DV,21 : “A Igreja tem venerado as Sagradas Escrituras como tem feito com o Corpo de Cristo”.
Lectio divina – O que é?
O meio usado para a assimilação da Palavra de Deus, tão cara a S. Bento, é o da lectio divina, isto é, a leitura meditada e saborosa do texto sagrado. A Escritura é um livro vivo e, sob a palavra, esconde-se a misteriosa presença de Deus, que nos interpela e nos salva. Retomando as palavras de S. Jerônimo –“Como o Espírito de vida toca a alma do profeta, da mesma forma toca a alma do leitor” – a DV escreve:”… as santas Escrituras devem ser lidas e entendidas com o mesmo Espírito com que foram escritas”. É à luz do magistério da Igreja que isso se realiza, excluindo-se todas e quaisquer interpretações individuais ou de outros guias.
Como fazer a lectio divina
É comum ensinar-se um método que comporta 4 tempos: a leitura (lectio); a assimilação (meditatio); a oração (oratio) e a contemplação (contemplatio). A leitura deve ser calma, recolhida, com interesse e o desejo de buscar e estar com Deus. É auxiliada pelo prévio estudo da Palavra de Deus, pelo recurso às notas do texto bíblico, etc.
A “meditatio” (literalmente: meditação) é, no vocabulário monástico, algo diferente do que se costuma entender por “meditação”, na espiritualidade moderna. A “meditação” de que se trata é o exercício de decorar, de aprender de memória passagens do texto sagrado para “ruminá-los” no decorrer do dia. Cassiano, um autor monástico, escreve que os monges do Egito “trabalhavam continuamente em suas celas, mas não deixavam de murmurar interiormente os salmos ou outras passagens da Escritura” (Inst.3,2).
Na oração, terceira etapa da “lectio divina”, reza-se, faz-se um pedido decorrente do que se leu. Pergunta-se: “O que este texto me faz dizer a Deus?” A DV nos exorta a isso: “Recordai que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a fim de que possa estabelecer-se o colóquio entre Deus e o homem, posto que, quando oramos, falamos com Ele; a Ele escutamos quando lemos os oráculos divinos”(DV 25).
A quarta etapa é a contemplação, uma elevação da alma, a partir da leitura da Palavra.O Concílio assim diz: “Esta sagrada Tradição e as Sagradas Escrituras de um e outro Testamento são como um espelho no qual a Igreja peregrina contempla a Deus sobre a terra, do qual tudo recebe, até que chegue a contemplar o Verbo face a face, tal como Ele é” (DV 7). Essa elevação nos faz saborear a revelação divina, como diz ainda a DV: “… para dar esta resposta de fé, é necessária a graça de Deus, que se adiante e nos ajuda, juntamente com o auxílio interior do Espírito Santo, que move o coração e o dirige para Deus, abre os olhos do espírito e concede a todos saborear, aceitar e crer na verdade”.
Frutos da lectio divina
S. Boaventura (Brevilóquio) assim escreve: “A finalidade ou fruto da Sagrada Escritura é a plenitude da felicidade eterna, porque as palavras da Escritura são palavras de vida eterna, pois foram escritas não só para acreditarmos, mas também para alcançarmos a vida eterna, aquela vida na qual veremos, amaremos e serão saciados todos os nossos desejos” •
Orígenes, na sua Homilia 4 sobre o sl 36, assim se expressa: “A Palavra de Deus virá a vossas almas e, unindo-se ao vosso coração, formará vossas mentes segundo a imagem da mesma palavra, ou seja, desejareis e realizareis o que deseja a Palavra de Deus e, assim, o próprio Cristo será formado em vós”. Citemos também um monge do deserto, Nesteros: “Esforça-te, por todos os meios, para entregar-te freqüentemente, ou melhor, constantemente à leitura sagrada, até que este contínuo ruminar impregne tua alma e, de certo modo, a forme à sua imagem. Por isso, deve-se aprender de cor e repetir sem cessar as Escrituras”.Por fim, ouçamos o que diz um autor moderno: “A meditação contínua da Escritura nos dá a mentalidade de Deus”.
Realiza-se assim, na vida espiritual do monge beneditino, o que diz um Prefácio do Missal Romano: “como outrora aos discípulos, Ele nos revela as Escrituras e parte o pão para nós”.